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Filha de pastor, Luana é transexual que não abre mão de ser “serva de Deus”

“Isso é pecado!”, “Você vai ser condenado ao inferno”, “Isso não tem perdão para Deus”, afirmavam-lhe fiéis da igreja evangélica quando Luana Dhara Arruda Ferreira, até então adolescente e com aparência masculina, enxergou a própria sexualidade e sentiu que não pertencia ao corpo de Lucas.

Thailla Torres – Campo Grande News

Hoje, aos 39 anos, Luana é uma transexual evangélica, missionária, que sonha em ser pastora e que se apresenta como “serva de Deus”. Em um momento em que boa parte das igrejas evangélicas e a “bancada da Bíblia” que governa o Brasil defendem os valores da vida, exceto a diversidade sexual, é significativo saber como uma transgênero tem sobrevivido em um meio tão controverso.

O Lado B a encontra em sua casa, no Bairro Jardim das Nações, onde voltou a morar com os pais há pouco mais de 10 anos. De sapatilha, legging, maquiagem e com a Bíblia nas mãos, Luana inicia a conversa ao lado do pai, sem meias palavras ou receio de voltar ao passado, doloroso, que um dia a condenou por desejar homens e se “vestir igual mulher”.

Luana entre o pai Etelvino e a mãe Noemi. (Foto: Thailla Torres)Luana entre o pai Etelvino e a mãe Noemi. (Foto: Thailla Torres)Clique na imagem para ampliar

A família inteira sempre foi evangélica. Luana nasceu dentro da igreja e permaneceu firme até os 18 anos. Cantava, pregava, participava e coordenava um grupo de jovens, até o dia em que foi rechaçada por causa da sexualidade.

“Desde pequena eu sentia isso dentro de mim”, diz sobre se sentir mulher. “Aos 14 anos eu fui morar em um colégio interno só para filhos de missionários. Surgiu o meu sentimento por outro menino, um sentimento correspondido. Aliás, foi muito bonito o que aconteceu entre eu e ele, apesar de ouvir muito do pessoal que isso era pecado, que eu seria condenado ao inferno e não teria o perdão de Deus”, conta.

Luana diz que passou anos com esse discurso na cabeça e em momentos de desespero questionava Deus sobre o que estava acontecendo com ela. Embora soubesse a resposta, ela não queria desapontar a família e nem a fé que sempre fez parte da vida. “Depois de um bom tempo, eu resolvi falar para os meus pais. Eles me mandaram para o psicólogo para me tratar e voltar a ‘ser uma pessoa normal’. Mas vi que não tinha como mudar, conversei novamente com meu pai e ele me mandou embora de casa”.

Na sua passagem fora do ambiente familiar, Luana abandonou a igreja. O pai continuou como pastor e ela, nas ruas, tomou coragem de viver aos poucos a própria identidade. “Eu trabalhava numa casa de boliche e levava minha roupa de mulher na mochila. Quando saía do trabalho, me vestia de mulher e ia embora todo dia para casa. Era o momento que eu tinha como mulher, dentro de casa eu também só ficava com minhas roupas femininas”.

O hábito continuou até se sentir segura para encarar de vez o período de transição. Desde então Luana nunca mais se apresentou com o nome de batismo, nem usou roupa masculina ou precisou abandonar a maquiagem. Mas ela conta que, apesar da liberdade, continuava sentindo falta da igreja e dos pais.

“Eu tinha um sonho de me casar e consegui. Me casei no papel, mas a relação só durou seis meses. Depois disso eu enfrentei uma depressão, vi minha vida sem sentido e foram os meus pais que me estenderam as mãos na hora que eu mais precisei”.

Todos os dias, Bíblia é sua maior companheira.  (Foto: Thailla Torres)Todos os dias, Bíblia é sua maior companheira. (Foto: Thailla Torres)Clique na imagem para ampliar

Não é por voltar a casa dos pais que Luana, ainda se sentindo religiosa, necessariamente voltou a igreja. Sentia-se distante do templo, mas sempre perto de Deus, afirma. “Sempre tive cristo na minha vida, eu sempre chorava e desabafava com ele. Eu pensava que literalmente ele vivia dentro de mim, independente de igreja e religião. Depois de quase 15 anos longe da igreja algo me tocou e me fez voltar. Foi a melhor coisa que eu fiz na minha vida”, garante.

Luana não é da mesma igreja em que o pai prega, mas segue os preceitos religiosos e lê a Bíblia diariamente, duas ou até três vezes por dia. Orações também fazem parte da rotina ao acordar, se alimentar e deitar. Quando o assunto é a sexualidade dentro da igreja, ela jura que isso nunca foi problema e nem ouviu do pastor qualquer pedido de comportamento diferente por ser transexual. “Eu encontrei uma igreja que me acolheu e disse que me aceitava como eu era. Lá eu escuto a palavra, oro, dou meu testemunho e sou muito feliz”.

Sobre igrejas que condenam a homossexualidade e pregam a diversidade sexual como pecado, Luana acredita que não dá para generalizar. “Sim, tem muitas que fazem isso, mas a que eu frequento não é assim e não piso em igreja que me pedem para ser diferente”.

Já o pai, pastor da igreja batista, Etelvino Ferreira, de 66 anos, afirma que apesar do choque entre a realidade e o “que diz a Bíblia”, ele não cede a pressão imposta por religiosos e a sociedade contra a filha, que ainda hoje ele não abre mão de chamar por Lucas. “Antigamente se tinha muitas diferenças de como se encarava a sexualidade. Até hoje recebo pressão de familiares, religiosos e a sociedade. Mas a gente sempre o amou”, afirma.

Etelvino também é contrário a quem diz que Luana está condenada por ser uma transexual. “Eu sou pastor, mas hoje analiso que na nossa denominação o homem salvo é salvo para sempre, independente do que ele é. Quando ele diz que se entrega a Cristo e que o senhor habitou o coração dele, ele pode ser salvo. É claro que há alguns choques com alguns textos bíblicos, mas só Deus sabe o futuro. Eu não tenho o direito de condená-lo. Eu sempre oro a Deus e peço que eu e ele nos encontremos realmente no céu”, diz o pai.

Luana se emociona e diz que quer continuar servindo. “Eu descobri que a igreja pode me respeitar do jeito que eu sou. E por mais que eu fique longe dela, eu sei que Ele está comigo. Então, se tem uma igreja que vai me aceitar e me amar do jeito que eu sou, eu vou continuar servindo. Sou serva de Deus”, finaliza.