Para a maior parte da população brasileira, o poder público precisa ser responsabilizado pelas mais de 700 mil mortes causadas pela covid-19 no Brasil e o país deve investir mais em saúde pública, ciência e pesquisa para evitar novas tragédias. A percepção foi exposta em uma pesquisa do Centro de Estudos SoU Ciência da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), que mostra que os brasileiros defendem investigação sobre o excesso de óbitos e punição dos responsáveis.
Ainda de acordo com o estudo, apesar da politização que envolveu as políticas de combate ao coronavírus, pessoas de diversos alinhamentos políticos concordam em assuntos como a importância das campanhas de comunicação, apoio à inovação e até mesmo ações de reparação às famílias de vítimas e pacientes com sequelas.
“Não é questão de narrativa, identitarismo ou religião, é uma questão de sobrevivência. Em ambos os lados começa a cair a ficha de que não topam a necropolítica e de que não querem mais ir para a beira do precipício, como fomos levados”, afirma o professor Pedro Arantes, um dos coordenadores da Pesquisa de Opinião Covid-19, Vacina e Justiça – Percepção pública brasileira sobre vacinação, tratamentos e reparação de crimes na gestão da pandemia.
O trabalho aponta que o impacto do luto imposto pela pandemia teve proporções de guerra. Mais de 50% da população brasileira perdeu alguém em decorrência do coronavírus. Para 62% das pessoas ouvidas, a conduta do governo federal foi responsável pelo aumento das mortes. A pesquisa também mostra que 52% consideram que eventuais crimes relacionados aos óbitos devem ser julgados e condenados.
Entre as formas de reparação consideradas apropriadas, 44,7% indicam a criação de uma Comissão da Verdade, 39% a indenização de crianças que ficaram órfãs e 38,3% a criação de um tribunal especial para acelerar os julgamentos.
O estudo perguntou ainda qual seria o melhor caminho para evitar que a tragédia se repita em caso de uma eventual nova emergência sanitária. O aumento de investimentos no Sistema Único de Saúde (SUS) é considerado essencial por 52,4% das pessoas; 46,5% apontam a garantia de mais recursos para ciência e pesquisa e mais de 38% defendem o aumento da produção de vacinas com tecnologia nacional.
A pesquisa apurou que, em relação à preferência eleitoral, os eleitores do ex-presidente Jair Bolsonaro tomaram 58 milhões de doses a menos de vacinas contra a covid-19 do que os do atual presidente, Luiz Inácio Lula da Silva. Considerando o sistema vacinal completo, os que votaram em Lula receberam 38% a mais de doses dos imunizantes contra a covid-19 do que os eleitores de Bolsonaro.
Leia os principais pontos da conversa a seguir e ouça a entrevista no tocador de áudio abaixo do título desta matéria.
Responsabilidades do governo
“Situações como uma pandemia envolvem decisões de saúde pública, que devem ser coletivas e devem ser muito coordenadas. É um momento decisivo dos mais críticos da atuação da política pública na área de saúde, porque não são escolhas individuais. É preciso coordenar uma série de campanhas de abastecimento, de mobilização em todos os níveis federativos, ninguém pode ficar para trás, ninguém pode furar fila.
É um momento em que vemos mais plenamente a importância da saúde universal e, felizmente, nós temos o SUS. Os Estados Unidos (que não têm saúde pública) tiveram uma situação ainda mais trágica, apesar de ser um país muito mais rico que o Brasil e mesmo quando nós estávamos governados por um governo criminoso. Eu prefiro não chamar de negacionista, porque eles tinham intenções claras. Estavam amparados por uma série de médicos que se dispuseram a dar supostos argumentos para as decisões que foram tomadas pelo governo.
Acho que estamos em um momento favorável agora, com a reabertura dos inquéritos pelo Supremo Tribunal Federal (STF). O procurador-geral da República – que espero que vá embora logo – foi, em grande parte, responsável por dar a permanente sensação de impunidade e sinal verde ao governo Bolsonaro, ao sentar em cima de todos os processos, não só os que a gente conhece de corrupção e golpismo, mas também os processos que mostram a conduta errática e criminosa do governo na pandemia.
Esses processos tinham sido encerrados, anulados, não tinham sido oferecidas as denúncias. É obrigação do procurador defender a sociedade diante dos crimes de estado. No Brasil parece que está virando recorrente que o procurador defenda o estado contra a sociedade, o que é uma inversão completa de papéis.
Em julho, foi reaberto o inquérito por ordem do STF e fizemos a pesquisa nesse mesmo momento. Percebemos que havia uma opinião pública muito favorável ao processo de julgamento, responsabilização dos responsáveis e indenização dos familiares das vítimas ou das vítimas que estão com fortes sequelas.
Também indenização aos que, heroicamente, atuaram profissionalmente na linha de frente no combate à pandemia, que se expuseram e não contaram com os equipamentos devidos nos momentos corretos e que tiveram ainda uma exposição adicional ao risco.
Os dados que temos para trazer é de que 62% da população considera que houve uma conduta criminosa do governo Bolsonaro e que ela implicou em um aumento das chamadas mortes evitáveis, calculadas em valores entre 120 mil e 300 mil.
São dados não atualizados para 2023, e que precisam ser atualizados. Provavelmente vão expressar números muito gritantes devido ao atraso na compra de vacinas, falta de financiamento do SUS, falta de campanhas de comunicação, falta de apoio ao uso da máscara, incentivo à aglomeração e a própria conduta, que era uma espécie de propaganda da morte.
Era uma necro propaganda que Bolsonaro e seus apoiadores faziam permanentemente, de exposição ao risco. Enquanto nos quartéis estavam todos seguindo fielmente os protocolos, se protegendo usando álcool gel, usando máscara, fazendo distanciamento, fazendo rodízio de ações e tomando as vacinas na hora certa, a população civil foi exposta, inclusive por militares, a uma série de riscos, que precisam ser julgados agora.
Quando falo que 62% acham que o governo Bolsonaro ampliou o número de mortes, não quer dizer que os outros 38% acham que não. Há uma porcentagem grande de indecisos e só 26% acham que a conduta do governo é indiferente e que as mortes iriam acontecer de qualquer jeito.”